Por Giulianna de Oliveira Mazzali e Larissa Mateus
No fim de janeiro, a novela “Terra e Paixão” entrou para a história da teledramaturgia ao exibir, em seu último capítulo, o primeiro casamento gay das novelas brasileiras. O final feliz do casal Kevin e Ramiro, interpretados pelos atores Diego Martins e Amaury Lorenzo, foi um marco muito importante para a comunidade LGBTQIAPN+, principalmente por terem seu beijo de quase 30 segundos transmitido em uma grande emissora de televisão nacional – a rede Globo. Entretanto, enquanto a ficção parece abrir cada vez mais espaço para casais homoafetivos, normalizando seus relacionamentos e incluindo algo tão simples como o casamento em suas narrativas, a realidade política do Brasil caminha em sentido contrário: em busca da proibição da união estável entre casais do mesmo gênero.
Após dois adiamentos, a votação do Projeto de Lei (PL) nº 5167/2009 foi aprovada pela Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados no dia 10 de outubro. A ideia do projeto, que ainda precisa passar pela Comissão de Direitos Humanos, pela Comissão de Constituição e Justiça e pelo Senado para entrar em vigor, propõe a revogação e a proibição do direito de uniões homoafetivas serem reconhecidas como casamento civil.
A proposta do relator deputado Pastor Eurico (PL) defende que nenhuma relação entre pessoas do mesmo gênero poderia ser equiparada às uniões heterossexuais. Contudo, o projeto de lei possui raízes e desdobramentos mais profundos, que remetem a outras tramitações jurídicas anteriores e que repercutem na sociedade há mais de uma década.
A APROVAÇÃO NO STF
Em 05 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal decidiu unanimemente equiparar a união homossexual à heterossexual em uma sessão com cerca de cinco horas de duração. Tal decisão passou a garantir o reconhecimento de direitos para casais homoafetivos, como adoção de filhos, pensão e aposentadoria, plano de saúde e herança, que até então eram privados de qualquer expressão jurídica dentro do âmbito familiar. De maneira geral, a aprovação dessa decisão significou o reconhecimento de relações homoafetivas como “entidades familiares”, direito que era reservado apenas para casais heterossexuais.
A decisão foi resultado de uma junção de fatores que refletiam a respeito do caráter democrático da ausência desses direitos jurídicos. Em primeiro lugar, ao se analisar o contexto político e social do Brasil na época, encontra-se um cenário em que o ano de 2011 marcou o início do governo da ex-presidente Dilma Rousseff, que além de ser a primeira presidente mulher a assumir o cargo, sucedeu a reeleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ambos candidatos do Partido dos Trabalhadores (PT), um partido pertencente à esquerda brasileira. A partir disso, percebe-se a mentalidade e o comportamento do país direcionados a um pensamento mais social, aberto e quase progressista, o que justificaria a iniciativa da decisão do STF.
Outro fator que levou a necessidade de trazer a discussão da equiparação às pautas públicas foi o estabelecimento de uma regulamentação-padrão já que, antes dessa data, cabia a cada juiz decidir individualmente sobre os direitos de casais homossexuais segundo seu entendimento próprio, o que poderia resultar em perda de processos para casais que utilizassem a união gay como justificativas judiciais para uniões familiares.
Diante disso, iniciaram-se pedidos para que o Código Civil não fizesse discriminação entre uniões homossexuais e heterossexuais no que diz respeito ao reconhecimento legal da união estável, sob o principal argumento de que tal distinção chocava-se com princípios constitucionais básicos, como o direito à igualdade e à liberdade e o princípio da dignidade da pessoa humana.
O julgamento do Supremo Tribunal Federal, então, foi pautado em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pela Procuradoria-Geral da República com o objetivo de reconhecer a união de duas pessoas do mesmo gênero como entidade familiar e de estender os direitos de pessoas em uma união estável heterossexual. Pedido acolhido, deu-se início à votação.
Dentre os onze ministros do Supremo, apenas um se absteve da votação — Dias Toffoli se declarou impedido de votar por ter participado anteriormente do processo quando fez parte da Advocacia-Geral da União. Os ministros Carlos Ayres Britto, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa, Ellen Gracie, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso votaram totalmente favoráveis ao parecer, enquanto Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes votaram como favoráveis com ressalvas. Lewandowski não explicou, na época, quais seriam suas ressalvas, mas Mendes afirmou que existiam uma “série de questões e divergências” e que seu voto “se limita a reconhecer a existência legal da união homoafetiva por aplicação analógica do texto constitucional”.
Apesar das ressalvas desses dois ministros, a maioria dos discursos trouxe um ar democrático, positivo e quase acolhedor à votação, como a fala de Marco Aurélio, que enfatizou: “As garantias de liberdade religiosa e do Estado laico impedem que concepções morais religiosas guiem o tratamento estatal dispensado a direitos fundamentais, tais como o direito à dignidade da pessoa humana, o direito à autodeterminação, à privacidade e o direito à liberdade de orientação sexual”. A votação, que precisava de seis votos favoráveis para entrar em vigor, se encerrou com dez votos a favor do reconhecimento dos direitos aos casais homossexuais.
É importante ressaltar, porém, que o casamento civil não foi legalizado nessa votação do STF em 2011 e, até os dias atuais, não houve nenhuma lei que oficialmente reconhecesse essa união. O mais próximo que a comunidade LGBTQIAPN+ chegou de reconhecimento de suas relações no âmbito jurídico foi um acréscimo do Conselho Nacional de Justiça à resolução, em 2013, que obrigou os cartórios a celebrarem casamentos homoafetivos.
Na prática, um simples papel não parece trazer tantas mudanças, mas traz. Para Luciane Schiavon, casada desde 2014 com Andreia Alves e mãe de primeira viagem, é um documento que representa grande diferença na vida prática dela e da esposa. “Eu não tenho que me preocupar com o meu plano de saúde, porque ele é obrigado a me aceitar a minha esposa e meu filho lá como dependentes. Tornou-se uma agenda muito operacional e tem uma simbologia muito libertadora. Não tem mais dúvidas, não tem mais pensamentos e angústias, porque temos toda uma relação jurídica que nos respalda”, explica Luciane.
Já para o padre Roberto “Beto” Daniel, excomungado pela Diocese de Bauru por apoiar publicamente o casamento homoafetivo, afirma: “Não oficializar o amor de pessoas do mesmo sexo deixa uma lacuna na sociedade. Nós deixamos de ser uma sociedade democrática se não reconhecermos os diversos tipos de família. Acho que isso é fundamental para sermos uma sociedade verdadeiramente democrática”.
A possibilidade legal de ter seus relacionamentos reconhecidos teve impacto direto no número de registros civis de casamento entre homens e entre mulheres. Segundo dados do Censo 2010, o primeiro censo do IBGE a incluir o número de pessoas que viviam com cônjuges do mesmo gênero, existiam mais de 60 mil casais homossexuais vivendo juntos no Brasil em condição de união estável, porém sem o reconhecimento judicial. A partir de 2013, com a garantia do registro em cartório, os dados cresceram exponencialmente com o passar dos anos, sua curva de crescimento sendo interrompida apenas por influência da pandemia do covid-19, que ganhou força no Brasil em 2020.
De acordo com os dados observados do gráfico, nota-se que o número de casamentos praticamente triplicou a partir de 2013, como consequência da possibilidade de garantia de direitos e pela segurança familiar que a união civil passou a representar na vida desses indivíduos. “A gente assinou, mas mais para tentar conseguir algumas garantias pessoais e individuais do que efetivamente participar de um movimento de pertencer”, ressalta Luciane, explicando que os casamentos entre os períodos de 2011 e 2015 não tinham a intenção de serem grandiosos e aconteciam quase de maneira sigilosa.
Para ela, apesar da conquista dos direitos, o casamento homossexual ainda representava um forte tabu para a sociedade. Segundo Schiavon, “as coisas eram menos radicais e menos agressivas, mas por outro lado as coisas tinham que ficar mais escondidas. A partir de 2015 ou 2016, as minorias começaram a gritar mais e, portanto, incomodar mais”. Ela defende que, por esse motivo, o preconceito e as atitudes discriminatórias públicas se tornaram mais incisivas e violentas contra casais homossexuais.
Pensamento com o qual padre Beto concorda: “Eu acompanhei o reconhecimento da união homoafetiva, e aparentemente foi um reconhecimento muito positivo da sociedade — mais tarde é que começaram a surgir posições negativas. Acredito que a sociedade se manifestou positivamente porque a ala conservadora não tinha sido empoderada para se expressar tão explicitamente contra, com essa ideia de que isso seria uma ameaça à família”.
CONTEXTO ATUAL
Apesar da decisão unânime do STF 12 anos atrás, o casamento gay estava em debate no governo brasileiro desde o início da década de 2000. O próprio Projeto de Lei aprovado na Câmara de Deputados no dia 10 de outubro, o PL 5167, está em tramitação desde 2009 – e é apensado a uma proposta ainda mais antiga, o PL 580, de 2007.
Para entender a tramitação do atual projeto, é preciso compreender o original ao que está anexado. Este Projeto de Lei foi redigido pelo então deputado Clodovil Hernandes, membro do Partido da República (PR), que hoje é conhecido como Partido Liberal (PL), o mesmo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Hernandes foi uma figura controversa para o movimento LGBTQIAPN+, já que apesar de ser o primeiro deputado abertamente homossexual no país, o político se identificava com a ala conservadora e se opunha a diversas questões que afetam a comunidade, como a parada gay.
A proposta do PL 580/07 é adicionar ao Código Civil a união estável entre pessoas de mesmo sexo– o que, ao contrário do decidido pelo Supremo Tribunal, deixaria explícito a legalização do casamento gay. O atual apensado em discussão, porém, transforma a proposta original de Clodovil em seu oposto, proibindo a equiparação do casamento ou entidade familiar de casais homossexuais a heterossexuais. De autoria do ex-deputado Capitão Assumção, o PL 5167/09 chegou esse ano para votação na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados, e após dois adiamentos, foi aprovado para seguir tramitação para a Comissão de Direitos Humanos. Para se tornar lei, o projeto ainda deve ser aprovado por essa e mais uma comissão antes de seguir para o Senado.
A votação de outubro demonstrou como a crescente polarização política se reflete na Câmara de Deputados. Em contrapartida da decisão do STF em 2011, não houve equilíbrio entre as opiniões de voto, como apoios com ressalvas, por exemplo– e, durante a reunião de três horas e meia, a discussão incluiu argumentos de cunho religioso embasados em estudos ultrapassados e outros extremismos a favor do projeto.
Durante a leitura do relatório, por exemplo, o relator do Projeto de Lei Pastor Eurico da Silva (PL) afirmou que “o comportamento homossexual é contrário ao caráter pessoal do ser humano e, portanto, contrário à lei natural.” Outras falas, como a do deputado Dr. Jaziel Pereira de Sousa (PL), expressam uma suposta ideologia socialista vigente no país, e que a união homoafetiva seria consequência disso.
A ala progressista se opôs à discussão do PL na Comissão, já que o relatório e a votação representaram uma quebra de acordo entre os conservadores e governistas feita na reunião anterior, que inclusive havia acertado que a reunião que aprovou o projeto nem iria ocorrer. O decidido era que, antes do PL ser colocado em votação, um grupo de trabalho seria criado para que o relator Pastor Eurico criasse sua proposta em conjunto com parlamentares a favor e contra o casamento gay, resultando em algo mais equilibrada entre os dois lados.
Apesar do acordo, o deputado escreveu seu parecer sozinho e conduziu a reunião que resultou na aprovação do projeto para seguir à próxima comissão. Em protesto, os deputados contrários ao PL saíram da sala após votarem. “Extremismo religioso, violência política, negação da democracia e utilização do Estado para impor uma crença. Essa é a visão de mundo por trás do relatório que visa acabar com o casamento civil homoafetivo”, afirmou o Pastor Henrique Vieira (PSol).
Apesar da vitória na Comissão de Previdência, as chances de que o projeto se torne lei são mínimas. A proposta ainda deve passar pela Comissão de Direitos Humanos, presidida por Luizianne Lins (PT), e pela Comissão de Constituição e Justiça, comandada por Rui Falcão (PT), que não tem a mesma predominância conservadora como a da Previdência, atualmente liderada pelo deputado Fernando Rodolfo (PL). Se ainda conseguir passar por todas as etapas da Câmara de Deputados, o texto deverá passar pelas Comissões e Plenários do Senado e, em último caso, por julgamento do próprio STF.
Especialistas afirmam que, caso chegue à última instância, o Supremo Tribunal deve declarar o apensado institucional e barrar sua implementação no Código Civil. De acordo com a Advogada Dandara Marques Piani, a afirmação de inconstitucionalidade pode ter os mesmos embasamentos jurídicos utilizados na legalização da união homoafetiva em 2011.
Durante a votação, o deputado Messias Donato (Republicanos) afirmou que o PL representa a vontade da maioria da população – porém, essa afirmação é contrária ao estado atual da enquete disponível no site da Câmara de Deputados, que está aberta desde 2018. Nela, 95% dos quase 4,6 mil entrevistados discordam totalmente da medida, mas ainda assim evidencia-se a atual polarização do assunto: os votos em opções de acordo e discordância parcial são estatisticamente insignificantes para o cálculo final.
Fonte: Câmara dos Deputados
A medida gerou ampla repercussão na sociedade. Ativistas e a Comunidade LGBTQIAPN+ expressaram descontentamento com o que o projeto representa para a conquista de direitos para a diversidade sexual até o momento. “Em uma democracia, uma medida como essa é inaceitável”, afirma Padre Beto. “Acredito que ele [PL 5167] vai ser rejeitado, é claro, mas acho que é um reflexo do empoderamento da extrema direita na sociedade”.
Luciane explica que, apesar da angústia sobre ter seus direitos ainda em debate, sente que é necessário manter-se forte. “Em frente a esse radicalismo, vamos mostrar como somos unidos, vamos mostrar que temos força, e que vamos vencer esse tipo de pauta que a gente nem imaginava ter que debater de novo em 2023.” Outros compartilham seus sentimentos, como Moisés Reis, em comentário no site da Câmara de Deputados: “Isso é claramente um grande absurdo, estamos falando em direito civil, que deveria ser igual para todos.”
Nas redes sociais, o tópico ficou entre os mais comentados no X (antigo Twitter) por horas após o fim da votação, com termos como “INCONSTITUCIONAL”, “Comissão da Câmara”, “LGBTQIA” e “Retrocesso”. Com a opinião pública contrária e as próximas instâncias mais progressistas, o projeto provavelmente não se implementará — a discussão proporcionada pela votação, porém, mostra que os direitos conquistados para a comunidade LGBTQIAPN+ não estão tão garantidos quanto se pensava.